sábado, 18 de dezembro de 2010

Afinal, somos solidários!



Nos dias que correm, ouvimos as pessoas dizerem que a nossa sociedade perdeu os valores éticos e morais e que muitos bons costumes estão na corda bamba. Nos dias que correm, as informações sobre crianças que são acusadas de feitiçaria são cada vez mais assustadoras. Nos dias que correm, somos inundados de notícias sobre idosos que são abandonados em hospitais e lares da terceira idade pelos seus familiares. Tudo isso ocorre numa época em que a sociedade angolana tenta resgatar os valores perdidos. Ocorre, também, numa época em que o ter é mais importante que o ser. Felizmente, tem havido minúsculos actos de solidariedade e de boa vontade que fazem a diferença.

Assistimos, recentemente, um acto puro e raro de solidariedade. Foi no dia 2 de Dezembro de 2010, numa quinta-feira, na cidade de Luanda, nos estúdios da Rádio Luanda. Vimos uma manifestação de solidariedade diferente. Temos visto actos de solidariedade em Angola, mas, aquele foi especial pela espontaneidade e compromisso que teve. Temos vistos, isso sim, actos de solidariedade de carácter, marcadamente, político e propagandista. Aquele do dia 2, não foi nada disso. Foi só uma demonstração do quanto a sociedade civil pode fazer por esta Angola.

Tudo começou quando o radialista Mateus Cristóvão, como sempre, jovial e bem-disposto, apresentou aos ouvintes da Rádio Luanda, o caso de um jovem que tinha uma dificuldade na fala e que respirava por um tubo. Seguidamente, Mateus Cristóvão deu a palavra ao jovem que, mal começou a falar, escutámos uma voz que lutava para sair daquelas cordas vocais. Nos apercebemos que o aparelho fonador daquele jovem estava debilitado. Nos apercebemos que ele respirava com muita dificuldade e, que havia um sopro ressonante que se seguia a sua voz. De facto, escutá-lo foi arrepiante. À medida que o tempo ia passando a sua voz, simultaneamente, tornava-se audível e perceptível.

Carlos – o nome do jovem – fazia um esforço titânico para explicar o problema que tinha. Segundo os médicos que ele consultara, ele tinha um câncer na laringe e, que a sua laringe precisava de ser operada urgentemente, caso contrário, corria o risco de perder a voz. Os médicos disseram-lhe também, que não havia (até aquela data) em Angola condições para a realização duma operação daquela natureza.  Os médicos aconselharam-no a reunir  os  meios financeiros para poder se deslocar ao Brasil, onde poderia, por um preço de oito mil dólares americanos, ter acesso à uma operação.
Carlos falou das dificuldades que, inicialmente, encontrou no seu contacto com os médicos. Foi à Junta Nacional de Saúde, mas só apanhou bailes e lições de burocracia. Nascido no seio de uma família pobre, ele já não sabia a quem recorrer. 

Carlos, enquanto contava todo o drama, imprimiu, de forma natural, sem fingimentos ou vitimismos, muita emotividade nas suas palavras. Pelas minhas ondas hertzianas, senti na voz dele, desespero e frustração, ao mesmo tempo, senti o poder que a força de vontade pode exercer num ser humano, senti o desejo de viver de um jovem que, não aceitava resignar-se àquela condição. Senti a coragem de um angolano que não perdeu a fé, diante da adversidade, mas, levantou-se e foi à luta! É obra! Carlos tentou, durante três dias consecutivos, ter acesso à cabina de locutores da Rádio Luanda. Nada! Pediu aos guardas da Rádio Luanda que lhe pusessem em contacto com alguém importante daquela empresa. Nada! Até que o jornalista Mateus Cristóvão, como que enviado pelo criador do universo, permitiu a entrada de Carlos nos Estúdios da Rádio Luanda, dando-lhe a impagável oportunidade de expor o seu problema. E Carlos fê-lo, com muita tranquilidade e sobriedade. 

Feita a exposição do problema, logo a seguir, Mateus Cristóvão disse ao Carlos que aquela era a ajuda possível da Rádio ou seja que ele pudesse dar a conhecer à sociedade o seu problema. Entretanto, o apelo havia sido lançado à sociedade. E, a sociedade reagiu! Há muita boa gente na sociedade civil, diga-se de passagem! Será que um governo da Sociedade Civil faria melhor em Angola? Quem sabe?... As demonstrações de solidariedade foram sucedendo-se uma atrás da outra. O telefone não parava de tocar! Pessoas anónimas, pessoas identificadas, pequenas empresas privadas, todo mundo queria participar. Todo mundo queria contribuir, nem que fosse só com mil kwanzas. No meio de tantas chamadas telefónicas, todas elas oportunas, houve uma que foi oportuníssima. Foi o de uma senhora que disse que o seu esposo teve o mesmo problema, que havia sido operado na Namíbia e, que as despesas da operação rondaram os quatro mil dólares americanos. A senhora predispôs-se a fornecer ao Carlos toda ajuda necessária, no que toca a informações sobre o hospital, os médicos e os contactos de angolanos que vivem na Namíbia que ajudariam o Carlos enquanto lá estivesse.

Meia hora depois, Carlos não só obteve quase quatro mil dólares, como também já lhe tinha sido assegurado o bilhete de passagem para si e para a acompanhante, que seria a sua irmã mais velha. Comovido, Carlos agradeceu a Deus e todas as pessoas que, num esforço conjunto, eliminaram a dificuldade financeira que o impedia de levar a cabo uma viagem ao estrangeiro. Foi emocionante.

Este episódio na vida de Carlos e de todos que se predispuseram a ajudá-lo, trouxe-me à memória a imponente obra cinematográfica da realizadora norte-americana Mimi Leder. Trata-se de “Favores em Cadeia”, cujo título original é “Pay it Foward”. A sinopse deste filme pode ser, eventualmente, compactada numa pergunta: Que podemos fazer para mudar o mundo? “Favores em Cadeia” é um romance inesquecível que nos faz pensar que, talvez, não é assim tão difícil mudar o mundo. Por vezes, bastam pequenos gestos que podem resultar em mudanças significativas. O enredo de “Favores em Cadeia” apresenta-nos um Professor de Estudos Sociais, Reuben St. Clair, interpretado pelo “oscarizado” Kevin Spacey, que decide um dia propor aos seus alunos, como uma espécie de avaliação contínua, que tentem encontrar uma ideia para alterar o mundo e pô-la em prática. Trevor, interpretado por Haley Joel Osment, aquele garoto do filme “O Sexto Sentido”, é um dos seus alunos, tem então uma ideia que, à partida parece bastante descabida e sem pernas para andar. Ele decide ajudar três pessoas sem lhes pedir nada em troca a não ser que cada uma delas faça o mesmo a outras três e assim sucessivamente. E, para surpresa geral, aquilo que no início parecia uma simples utopia de criança transforma-se, em pouco tempo, numa colossal onda de solidariedade que percorre toda a América. 

Tal como os obstáculos que, Trevor encontrou para dar seguimento à sua ideia, a odisseia de Carlos também se nos apresenta cheia de acidentes de percurso e peripécias. Que ponto em comum tem a ficção de Trevor e a realidade de Carlos? A forma natural e espontânea que a sociedade  civil  abordou as questões.

Os valores éticos e morais da sociedade angolana, ainda, tem acérrimos defensores teóricos e práticos. Só basta que haja momentos livres e puros, sem os habituais manipuladores mediáticos que só se apresentam para dar show. Nem tudo está perdido, apesar do pesares. Afinal, somos solidários!

Um comentário:

  1. Vieram-me lagrimas nos olhos, por dois motivos:
    Pelo sofrimento do jovem Carlos e por saber que nem tudo esta perdido na nossa Angola,ainda existem pessoas que se solidarizam com os problemas do proximo...

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